sexta-feira, 14 de abril de 2017

PÁGINA EM BRANCO


Coçou o queixo com um de seus tentáculos e acendeu um cigarro. Cigarros o faziam pensar melhor. A cabeçorra, maior que uma melancia, estava repleta de suspeitas sem relação umas com as outras. Estava confuso e, perdido em pensamentos disparatados, deu um profundo trago. Só depois do segundo copo de uísque as ideias foram sem encaixando. O homem escorregadio e libidinoso da noite anterior era inocente. Não havia nada que o incriminasse, apesar de sua personalidade pastosa e um tanto lúgubre. O terno do homem escorregadio atraía especialmente a sua atenção. Parecia ser imune ao visgo que como um suor viscoso emanava de todos os seus poros. A mulher formiga era a sua principal suspeita. As aparências enganam, mas não por muito tempo, pensou ele, enquanto dava outro profundo trago no cigarro seguido do último gole da dose. É, nada como uma página em branco. Queria eu ter criatividade para escrever romances ou contos. Já escrevi contos, mas isso faz tempo, ainda era publicitário à época. Ainda amava a publicidade e me julgava criativo. Isso realmente faz tempo. Hoje odeio o fazer Publicidade e não escrevo mais contos. A Publicidade me deu grandes amigos e grandes crises depressivas e de pânico, regadas a abuso de drogas e tentativas de suicídio. Na quarta crise, decidi que já tinha tido o meu quinhão de sofrimento profundo e negro e que não poria mais os pés dentro de uma agência. Ainda me aventurei mais uma vez, mas pulei fora quando as nuvens negras começaram a se formar no meu horizonte emocional. Desde então, me tornei curatelado o que é ao mesmo tempo uma maldição e uma bênção. A maldição é a eterna dependência e a extinção de quase todos os meus direitos civis visto que sou declarado judicialmente como incapaz civilmente. A bênção é a pensão vitalícia que me garante um amparo para quando minha mãe se for e outra pessoa tome seu lugar como minha curadora. Quem se apresentou para substituí-la foi o meu amado irmão. O único problema é que ele mora nos Estados Unidos. Isso vai ser um complicador burocrático para o recebimento da pensão, tenho absoluta certeza. A não ser que haja um Banco do Brasil acessível ao meu irmão lá, o que acho bastante difícil. Talvez em Nova Iorque, que fica a algumas horas de onde meu irmão mora. Sei não e espero que esse momento demore bastante para chegar. Quero ter a minha mãe por muito tempo junto a mim. Estou com sono.

15h22. Peguei no sono e minha mãe me chamou para almoçar. Acho que vou dormir um pouco mais.

18h51. Acordei, aliás, fui acordado novamente por minha mãe. Sinto que dormi um bom sono, mas que dormiria mais. Mas já estou mais desperto. Ma non tropo. Por mim, emendaria o sono até amanhã. Espero despertar, quero ver se assisto “Fragmentado”. Mamãe quer que eu vá comprar Coca Zero, pois amanhã é feriado, Sexta-Feira da Paixão, ou coisa que o valha. Estou fazendo hora, primeiro porque acho que os supermercados devem estar lotados por causa do feriado e queria comprar na pizzaria que fica aqui em frente ao prédio. Aposto que não vou conseguir o meu intento e minha mãe já-já aparece aqui me dizendo para ir comprar as Cocas.

19h14. Fui pegar Coca e ela não falou nada sobre a compra dos refrigerantes. Perguntou se eu queria uma sopa de copo no que disse que sim. Sinceramente não queria pegar uma fila enorme de supermercado para comprar três Cocas Zero. Prefiro pagar a mais pela Coca e pela comodidade com o dinheiro da minha pensão. Afinal será com o dinheiro da minha pensão que comprarei num lugar ou no outro, pois eu que banco as minhas Cocas.

19h45. Estou sem inspiração nenhuma para escrever. Que ozzy. Isso vem me acometendo recentemente. Acho que porque a minha vida está meio sem conteúdo novo. Ainda não fui aos Correios reenviar a boneca que era para ir para o destinatário e sempre acaba vindo para mim. É a segunda vez que isso ocorre. Vou pedir para ver se o cadastro computadorizado não está invertido, se no sistema dos Correios eu não estou como destinatário em vez de remetente. Só pode ser isso. Ou muita burrice mesmo. A sopa está muito quente e desce queimando as entranhas. Escolhi frango com queijo. Lembra um pouco esses dois ingredientes. A outra era carne com jerimum, eu acho. Eu já tomo muita sopa de real jerimum aqui em casa, então optei pela mais diferente do meu cotidiano.

20h11. Concordei em ir ao supermercado comprar as benditas Cocas. Disse que daqui a meia-hora eu iria.

20h12. Me dei conta, alavancado pela lembrança de um mal que há muito não me aflige, de como é bom ter o corpo respondendo a todos os comandos da minha mente. É uma coisa que tendemos a nem levar em conta, essa subserviência do corpo aos ditames da nossa vontade, mas para quem já “acordou antes do corpo” e tentou, sem êxito, se mover ou, como era o meu caso, até mesmo respirar, sabe o quão angustiante essa situação de aprisionamento (e sufocamento) pode ser. E quando finalmente conseguimos fazer com que o corpo “desperte”, depois de muita luta de nossa vontade, há uma sensação de alívio tremendo. Fico imaginando como deve ser difícil para alguém que é tetraplégico, que está escravizado à própria cabeça, aceitar tal condição. Minha ignorância não me permite saber se sente as demais partes do corpo, se possui tato nelas, ou se lhe são inacessíveis quaisquer estímulos impressos a tais partes. Acho que, nessas condições preferia não sentir o que a mim, à minha vontade, me é inútil. Aí eu me dou conta de quão afortunado eu sou de possuir completa liberdade de movimentos, não estar claustrofobicamente preso apenas à minha cabeça. Por mais que não use muito as pernas, gosto de tê-las sob meu controle e sempre prontas a responder às minhas vontades. E de sentir o meu corpo todo. Isso só seria ruim se me ateassem fogo. Puxa, estou com pensamentos catastróficos hoje. Imaginando as piores situações que podem se dar a um cidadão. É a falta de assunto. Deveria só escrever quando tivesse realmente algo de novo a dizer, mas não me controlo. Vejo o Word e ele me atrai. E, uma vez sentado, preciso despejar nele algumas palavras. Minha alma pede isso. Preciso ir ao supermercado. Saco. Mas é para o meu próprio benefício, então não deveria reclamar. 20h32. Vou lá.

21h52. Fui, voltei, tomei banho e cá estou. Recebi a minha camisa com uma das irmãs de Sandman estampada (Insanidade, talvez? Não lembro o nome). Gostei muito. Embora a impressão não tenha ficado 100%, na minha opinião, mas a ilustração é bela. Talvez vá a Porto amanhã com ela. Apesar de estar meio amassada pelo envio. Não sei, amanhã no calor dos acontecimentos eu decido. Estou ouvindo “The Joshua Tree” do U2; me veio à mente quando estava cantando no banheiro. Ah, adoro cantar no chuveiro. Como já disse em posts antigos, uma coisa para a qual não tenho a mínima consciência ecológica é a economia dos recursos hídricos, especialmente no que condiz a banhos. Eles, para mim, são momento de relaxamento e prazer, de meditação. Tomo-os mornos. Não muito quentes, pois o clima daqui já é bastante quente, de preferência com um jato forte de água massageando o meu corpo, em particular cabeça e costas. Escovo meus dentes geralmente durante os banhos, então meu banho pode ser considerado demorado e não desligo o chuveiro em momento sequer, a não ser quando me dou por satisfeito. Então os meus sobrinhos-netos vão sofrer com a falta de água em parte por causa de mim. E sou realmente insensível a isso. Deve ser me sangue indígena, acostumado com a fartura encontrada no paraíso tropical que meu lado português veio dominar e destruir como o superego se sobrepuja ao id relegando a este o espaço dos sonhos. Por falar em sonhos. O de ontem me deixou com Clementine na cabeça, o que é péssimo para mim. Espero que essa paixonite se esvaia de novo ao lugar que lhe é de direito, o limbo emocional. Não devia ter mencionado Clementine, agora ela vai pairar sobre minha cabeça como um fantasma. Saco. E não posso falar nem rememorar a paixão que a substituiu e a pôs em seu devido lugar aqui. Acho que vou digitar os diários. É o melhor que eu faço. Faz tempo que me devo isso. Nossa, 22h21! O tempo voou. Há pouco eram 20h. Vou lá. Se levar o computador para Porto e me for permitido ligá-lo lá, continuo o meu post da praia.

23h41. Terminei um dia do diário e me dei por satisfeito. Muito chato digitar sem criar, sem ao menos descrever algo novo. Já está tudo posto lá. Embora tenha chegado num dia decisivo do diário em que terei que narrar fatos que omiti para poupar a cabeça de um funcionário do Manicômio que acabou sendo posto para fora do mesmo jeito. Estou com uma fome de comer bagana, biscoito, Torcida. Vou me esbaldar neles agora.

23h54. Acho que vou dormir. Comi meio pacote de Torcida sabor cebola – delícia – e três Bono de chocolate. Mas a fome dos remédios persiste. Acho que vou comer o resto da paçoca com feijão.

0h. Não havia mais paçoca, então apelei para minha velha e querida farinha láctea. Caramba até chegar no episódio do meu reencontro com a farinha láctea no diário do Manicômio ainda leva um tempão. Que saco. Se o meu padrasto for dormir na próxima meia-hora, certas coisas podem ser diferentes. Para melhor. Ter a noite só para mim é sempre bom. À noite todos os gatos são pardos, já dizia o ditado. Mas não planejo nada demais, talvez jogar o Zeldinha. Por falar em Zeldinha, eu tenho o Zeldinha mesmo, do SNES no Wii U. Foi o primeiro – e único até agora – jogo que comprei no eShop da Nintendo. Quero muito comprar o Super Metroid, o Metroid Fusion e o Metroid Zero Mission, mas não faz sentido comprar se não jogo os que já tenho. Se zerar um que eu tenha, eu posso até me dar ao luxo de comprar um dos Metroids. Mas antes preciso zerar algum. Essa é a condição que eu acho justa me impor.

0h48. Quase comprei o boneco de Malavestros com os meus reward points agora. Vou é dormir, que é o melhor que faço. E mais econômico também. Meu padrasto não vai dormir, então quem vai sou eu. Vai ser um saco acordar cedo amanhã. Quer dizer, hoje, né?

0h55. Queria fumar o meu cigarro antes de dormir, mas com meu padrasto na sala, acho que complica. Vai de Vaporfi mesmo a saideira.


E ela parou sua dança para acolhê-lo. Bailava solta e bela, mas a presença dele se fez mais importante que o delicado e vibrante movimento do seu corpo. Foi como se a canção que a embalava cessasse com a sua presença. Era necessário tomá-lo nos braços, pois, antes de mulher, se sentia agora e primeiramente mãe. Só para acabar com um pequeno texto de ficção como quando comecei este post e mostrar o poder de uma página em branco. 

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